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Giovanni Guida: “Toda arte verdadeira já é sagrada”

Giovanni Guida

Courtesy of the artist

Daniel R. Esparza - publicado em 21/09/23

A Aleteia entrevistou o jovem artista italiano, que falou sobre a arte sacra, a busca da beleza e da verdade e as tendências artísticas atuais

O artista italiano Giovanni Guida foi considerado herdeiro de Max Ernst pelo uso original da grattage – técnica que consiste em “riscar” pigmento fresco, sobre suporte preparado, com lâmina afiada. A ideia, muitas vezes utilizada pelos pintores surrealistas, é “dar movimento” à superfície da composição, tornando-a mais dinâmica.

Existem razões por trás desta escolha técnica. A grattage de Guida consiste em rasgar a tinta, como se evocasse o rasgar do véu do Templo. O movimento é bastante claro: o dilaceramento vai de cima (isto é, do divino, do transcendente) para baixo (para a nossa realidade demasiado humana). O modo como ele usa a cor também enfatiza essa tensão. O azul encontrado em sua obra (um azul “celestial” que emula o azul bizantino) aponta para a encruzilhada entre um natural aqui e um sobrenatural ali.

Nesse sentido, sua arte pode ser considerada contemplativa, meditativa – até mesmo teológica. A Aleteia teve a oportunidade de entrevistar o jovem artista e discutir a arte sacra, a busca da beleza e da verdade, as tendências artísticas atuais e “partir para as profundezas”. [Entrevista editada para maior clareza.]

Aleteia:Sua arte foi descrita como hierofânica. Como a arte contemporânea é capaz de manifestar o sagrado? 

Giovanni Guida: Minha arte se torna hierofânica no momento em que o véu da pele da pintura se rasga para tornar visível a gênese das coisas, o mundo no seu estado nascente. Esta ação é “reveladora” porque há a irrupção repentina da realidade absoluta do sagrado que, transcendendo este mundo, se manifesta e, portanto, o sublima, santifica-o e torna-o real. Quando a cor se liberta das sucessivas sobreposições de camadas cromáticas e é levada de volta ao seu brilho e pureza primordial através de ferramentas para alcançar a “Grande Beleza” — chegamos a uma espécie de “transcendência espiritual” da percepção; existe o desejo de se libertar da matéria, de não ter mais pontos de fuga e limites, de lutar e alcançar o impossível. Esaa ação envolve a “penetração” do universo espiritual. Não é possível descrever conceitualmente como a arte contemporânea consegue manifestar o sagrado: diante do caráter excepcional dessa manifestação, que vai além do habitual, o artista deve simplesmente sentir-se questionado, desafiado e assim iniciar esse caminho de progresso linear – o que se consegue na tentativa de implementar um diálogo entre o homem e o Absoluto, com um sentimento reverente diante do infinito como um numinoso “ mysterium tremendum et fascinans”,  que desconcerta a razão, choca e desperta admiração e espanto.

Na sua obra, a cor azul parece desempenhar mais ou menos o mesmo papel desempenhado na arte bizantina. Este é, no meu entender, um movimento que vai da metafísica para a natureza. Você poderia falar mais sobre sua paleta?

Giovanni Guida: Sim, é um movimento que vai da transcendência à imanência, quase como se fosse um presente do alto a ser preservado e valorizado; a matéria é evocada sem representá-la (sem torná-la presente): o Absoluto que se abre ao humano, conduzindo a um culto do imaterial, do invisível, a uma sublimação da cor numa dimensão supra-histórica (a revelação do princípio do interno necessidade através da dimensão da cor). Minhas obras são caracterizadas pela profundidade do azul nobre do lápis-lazúli — que se projeta além do humano, entre a apoteose e a glória que não têm dimensão: o além-mar espiritual que busca o infinito, a Divindade, o sopro vital, a meditação e a revelação; da prata, que lembra o requinte das esculturas preciosas dos ourives sagrados e do ouro, que lembra a aliança entre o Absoluto e o homem, a “metafísica da luz”, a incorruptibilidade e a eternidade da arte.

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“Apotheosis”, obra do artista Giovanni Guida.

Na sua opinião, qual é o lugar da arte sacra no mundo artístico atual?

Giovanni Guida: Nesta sociedade líquida (como a define o filósofo Zygmunt Bauman) há uma fratura entre arte e fé. Paulo VI em 1964, dirigindo-se aos artistas, disse: “Precisamos de vocês”. Essa frase trouxe à tona um sentimento de culpa e abandono em um mundo que se emancipou, com caminhos autônomos e independentes. Acredito que toda “arte verdadeira” já é sagrada como expressão do homem que, profundamente enraizado na realidade em que vive, se abre à dimensão de um “outro lugar”. Na minha opinião, o termo “Sagrado” não é específico da arte cristã, mas está relacionado com toda expressão estética que trata em profundidade o tema do humano. Acho que essa sacralidade é o que consideramos a “grande beleza” porque todo verdadeiro artista está em busca da beleza, de um lugar de densidade de significado, de profundidade de significado, de um produto significativo dentro de nossa cultura.

Também é verdade, por outro lado, que intelectuais e artistas se voltaram para a filosofia de inspiração bíblica (e até mesmo para a literatura bíblica e teológica) para examinar o seu trabalho e dar sentido ao momento atual. Você diria que isso faz parte da sua disciplina como artista? 

Giovanni Guida: Claro, busco uma filosofia de inspiração bíblica para dar sentido ao meu trabalho, a fim de implementar uma atividade metacognitiva de autoavaliação e autocorreção. Em particular, inspiro-me na filosofia de Agostinho de Hipona, um expoente da patrística. O que é verdade?  O que é a verdade? Esta busca da verdade liga-me simbolicamente ao famoso véu do templo de Jerusalém, aquela enorme cortina que separava a parte destinada aos sacerdotes da parte inacessível (reservada ao Sumo Sacerdote, homem de grande espiritualidade) onde estava a relíquia contendo o reflexo da “mão de Deus”, a Arca da Aliança. Quando o “Rei dos Reis”,  Rex Iudaeorum, morreu na cruz, este véu foi rasgado em dois, de cima (transcendência) para baixo (imanência). O evangelista Lucas nos conta que o véu se rasgou ao meio; é emocionante notar como esta laceração se refere idealmente à penetração do filme pictórico através da técnica grattage; o artista que encontra o Absoluto no meio do caminho, no centro, para fazer cair o véu e desaparecer dos nossos olhos e vivenciar a verdade.

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“Magnificat”, obra do artista Giovanni Guida.

No que você está trabalhando atualmente? Para onde sua pesquisa o está levando agora, tanto em termos de técnicas quanto de assuntos? 

Giovanni Guida: Existem novos territórios para explorar; precisamos desequilibrar, inovar e reinventar (pensamento e técnica), olhando tudo de uma perspectiva, ângulo diferente. O objetivo é “partir para as profundezas” (Duc in altum), descentralizar-me do mundo e do sistema da arte contemporânea e não necessariamente aderir às convenções, convergências, rituais e estereótipos do presente. Ser visionário, agarrar o futuro antes que ele aconteça e abrir-se à divergência, à globalidade, à totalidade das coisas. A arte deverá emergir de realidades estáticas e delimitadas: o mundo deverá tornar-se um museu amplo, que não terá mais paredes, será possível ver os céus abertos e rasgados (como a visão do protomártir Estêvão) e não haverá mais estruturas, gaiolas e definições. A “Grande Beleza” não pode ser questionada, mas reina por direito divino. Só transformando a nossa vida numa obra de arte, tornando a nossa existência autêntica, singular, concreta e digna de ser vivida, poderemos penetrar no nosso “principium individuationis” e nos entregarmos aos outros.

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